Para Aurealice Chachin Bess - minha primeira professora.
Quando os outros saiam para a escola, eu ficava em casa com os brinquedos.Tinha os balanços na figueira, com as cordas trançadas de cipó São João; a peteca com as penas roubadas do rabo do Galo Vermelho; as pernas de pau, que na verdade eram de bambu; o arco-e-flecha enfeitado de penas de angola, e também as canoas trazidas dos coqueiros do Seu Juca, para se brincar nas barrancas de capim. Tudo adaptado pela manufatura criativa do mano Salvador.
Quando os outros saiam para a escola, eu ficava em casa com os brinquedos.Tinha os balanços na figueira, com as cordas trançadas de cipó São João; a peteca com as penas roubadas do rabo do Galo Vermelho; as pernas de pau, que na verdade eram de bambu; o arco-e-flecha enfeitado de penas de angola, e também as canoas trazidas dos coqueiros do Seu Juca, para se brincar nas barrancas de capim. Tudo adaptado pela manufatura criativa do mano Salvador.
Porém,
o brinquedo predileto eram meus boizinhos de vidro. Aproveitamento das vacinas
contra Aftosa, aplicadas nas vacas do tambo de leite do Teneco, e que eu
mantinha cuidadosamente presos em currais cercados com cordão de palha de milho
e taquara, com tanque de pedra pra água e capim cortado de fresco.
Tinha
também aquele campeonato interno e secreto de procurar os ninhos das galinhas,
patas e angolas do terreiro; onde a disputa era intensa e constante.
Mas eu queria mesmo, era ir pra escola.
Descortinar aquele mundo que havia por trás dos cadernos deles, no burburinho
deles ao redor da mesa, durante o tema, enquanto eu ficava em torno, quando
aprendi a ler por volta dos quatro anos de idade.
Lia
os livros da casa: Manual das Técnicas do Apicultor, O Poder do Pensamento
Positivo, (e um brinco de livro - trazido pelo dono das terras: Gal Mário
Fonseca, que andava sempre de botas de cano alto, de forma que meus olhos
ficavam à altura das fivelas - intitulado: O Cãozinho Brincalhão. Com linda
capa e ilustrações, devo tê-lo lido todos os dias durante muito tempo).
No
meu sexto aniversário entrei para a escola. Eu já havia estado lá, na
inauguração, quando o então prefeito da cidade, Sr. Arno Juliano, todo
enfatiotado, e com grossas lentes, mãos cruzadas às costas, firmando o corpo,
ora nos calcanhares, ora na ponta dos pés, pronunciara um complicado discurso
em torno da questão do “saber”, o que me deixou matutando sobre aquilo.
Em
madeira, pintada de verde e amarelo (era o militarismo de 1968), não tinha água
encanada nem sanitários. Na frente subia uma pequena escada que conduzia até
uma área gradeada, que dava para as portas das duas salas-de-aula, a da
secretaria e a da cozinha.
O
assoalho desta área era sarrafeado, com frestas por onde se enxergava o porão.
Por medo de cair por entre elas, fazia com que minha primeira professora me
buscasse no colo, para a sala-de-aula, até o dia em que ela conseguiu me
convencer do contrário.
Era
maternal, e acho que gostou de mim imediatamente, como eu também gostei dela.
Tinha
um carinho natural, e uma paciência que estavam nela, muito diferentes daquilo
que eu estava acostumada.
Minha
mãe, eu lembro de estar sempre atrás dela (não lembro dela me perceber). Ia com
ela para a roça. Arrancava aipim, batata. Levava o balaio e a enxada pra ela.
Ia
com ela pra fonte. Ficava sentada num cepo de pau olhando ela lavar a roupa.
Ela batia e esfregava a roupa. Muita roupa...a espuma se formando...
“Pega
o anil”. “Tráz o sabão”. “Tira a roupa da cerca”. “Molha a roupa do quarador”.
Na
talha de pedra, cabiam quatorze baldes: “Encha a talha”. O mato era distante:
“Cata lenha”. “Faz o fogo”. O pasto era longe: “Dá água pro gado”. “Leva os
bois pra soga”.
Os
colchões das camas eram de palha de milho picadas: “Mecha as camas”.
Os
irmãos eram muitos: “Faz teu irmão dormir”; “Lava a Sued”; “Dá o bico pra
Sandra”; “Embala o nenê”.
O
comércio era longe: “Vá na venda”. Penoso não era subir lomba por 2h. Difícil,
mesmo, era colocar sobre o balcão a notinha amassada do fiado, e suportar o
olhar do Seu Bibi, para ela, enquanto analisava mentalmente o crédito (a
colheita da roça era semestral). Eu ficava encolhida esperando, duvidando:
“será?” (será que ele vai me perguntar:... “e o teu pai? quando vem acertar?”;
será que vai me deixar levar? e se não deixar levar, o quê que eu digo em casa?
Será?).
Minha
mãe colocava as panelas na grande mesa de cerne: “Não coma tudo. Deixa pr’os
outros”.
Minha
primeira professora conversava conosco. Conquistava no convencimento. Pouco a
pouco. Devagar. Cada dia um pedaço. Explicando. Exemplificando. Acreditava numa
conversa pra dois. Usava palavras no diminutivo. Se acocorava para falar com os
mais teimosos. Abraçava.
Foi
ela quem primeiro me falou de Deus. Disse que Ele era alguém que estava sempre
presente, mesmo quando parecíamos sozinhos.
Fazia-nos
repetir com ela: “Jesus, meu amiguinho, me conduza sempre pelo bom caminho”.
Descreveu
a eternidade exatamente assim:... “se um passarinho viesse, de cem em cem anos,
e com a ponta do biquinho tirasse uma gota de água do mar, um dia o mar secaria
e teria fim. A eternidade, porém, nunca se acaba”.
Cismei
sobre aquilo, durante muito tempo, tentando delimitar tal medida, pois não
conhecia nada que não tivesse fim, e misturei na idéia do conceito que se
formava, o açude do Seu Dulce, que era a maior porção de água que eu conhecia.
Naquele
tempo não havia Programa de Merenda Escolar. Cada aluno colaborava como podia,
para a sopa comum.
Eu
catava lenha pelo caminho da escola, e arrastava até o colégio, para ser usada
no fogão.
Minha
primeira professora fazia a merenda. Utilizava utensílios enormes.
Vez
em quando deixava a sala-de-aula para mexer nas panela e atiçar o fogo. Voltava
apressada com os cabelos espetados de cinza e fuligem.
Eu
ficava acordada na cama, esperando o barulho do pai, quando ele levantava,
esperando a hora de sair para a escola.
Pegava
minha roupa de sempre, pendurada num prego. Enfiava os pés no chinelo, pegava a
embalagem reutilizada de Cristalçúcar, contendo caderno e lápis, e saia pra
escola.
Os
cordões de chuva encobriam o Morro do Chapéu. Eu ia pra escola.
O
Minuano atravessava a pelúcia do casaco. Eu ia pra escola.
Café
da manhã não houve. Merenda? Talvez. Eu ia pra escola.
Os
bois brabos de tropa que invernavam no campo do matadouro do Seu Dé, bufavam
nas barrancas da estrada. Eu ia pra escola.
Lá
havia um mundo a minha espera, por trás das palavras encarreiradas no
quadro-negro (e era negro). Brotavam da Cartilha do Guri, das Pincelada de
Verde e Amarelo (em cuja contracapa estava escrito: “Estudar para saber. Saber
para vencer”); daquilo que a professora trazia e lia pra nós. Ela sempre lia
pra nós. Pairava o silêncio sobre as crianças. Nunca Coelho Neto fora tão
convincente, com seu Pequenito, como na voz dela.
Para
chegar até aquele portal de possibilidades para o novo, eu atravessaria a
cidade, se precisasse.
Quando
a geada branqueava a estrada, e os meus pés e mãos doíam, pra não me ver
chorar, meus irmãos me propunham pequenas corridas até a olheira de sol mais
próxima, que sempre me deixavam ganhar, e eu ficava me aquecendo por alguns
instantes.
Lá
na escola, como era interessante o gorro de lã, da Zaíra. Com as luvas
vermelhas da Rosana, eu sonhei muitas vezes. Quando minhas velhas roupas
surradas eram notadas em alguma piadinha dos colegas, eu não deixava que ele
voltasse pra casa ileso.
Minha
primeira professora me defendia dos pais das crianças que eu batia. Sempre
argumentava que eu não fizera por gosto: ...”a suelizinha não fez por querer”,
repetia.
Parece
que me enxergava por dentro, pois sempre atinava a real intenção dos meus atos.
Ela sempre me supunha melhor do que eu era.
Gostava
de nós nos olhos. Na voz.
Creio
que de tanto ouvi-la dizer que eu não tinha má intenção nos meus maus atos,
passei a não ver má intenção nos atos dos meus colegas, e as brigas foram
cessando.
Substituía
a colega. Juntava as turmas. Repartia o quadro com um risco de giz(branco).
Explicava. Explicava. E reexplicava.
Varria
o colégio. Enchia os baldes com água. Fazia expedições com os alunos mais
corajosos contra os ninhos de camundongos da despensa da merenda.
Brincava
conosco no recreio. Naquele tempo, todas as crianças brincavam juntas numa
única brincadeira. Corria. Se escondia. Pulava.
Era
Pata-Cega, a Cirandinha. Era o que quiséssemos que ela fosse.
Organizava
a fila. Cantava o Hino Nacional. Ensinou-nos a Posição de Sentidos
(“...Calcanhares unidos. Ponta dos pés afastadas”...).
Quando
chegavam os ovos coloridos na venda do Seu Doralino, eu sabia que era chegada a
Páscoa. Minha primeira professora trazia ovos de galinha, recheados com
amendoim.
Orava
conosco, antes da merenda, agradecendo a Deus.
Caçava
pelas moitas vizinhas, os alunos fujões das vacinas obrigatórias que os
soldados do 19 RI de São Leopoldo vinham, de Jeep, para nos aplicar. Eu mesma
ela resgatou de uma moita e me levou no colo e chorou comigo dizendo que era
para o meu bem.
Lembro
de uma feita que chegaram muitos vidros na escola, e foram distribuídos para os
alunos e familiares coletarem amostras para análise de verminose. Minha
primeira professora rotulou-os e os distribuiu, com cartazes que mostravam um
Zeca Tatu amarelo, com pés descalços, em cujas solas entravam diversos vermezinhos.
Durante
muito tempo verifiquei a sola dos meus próprios pés, depois que vieram os
resultados da análise, quando precisei passar longo tempo tomando Uvilon e
Licor de Cacau.
Minha
primeira professora limpava nossos aranhões. Enxugava nossos olhos. Era boa.
Podia-se contar com ela.
Me
deu aulas durante todo o Primário. Me ensinou sobre Números Negativos, me
preparando para o exame de Admissão ao Ginásio.
A
escola era situada numa espécie de campo aberto, salpicado de elevações de
cupinzeiro, onde as corujas faziam suas tocas; com um banhadinho onde morava
uma família de quero-queros, que sofriam com as crianças no recreio. Tudo
rodeado de maricás.
Minha
primeira professora vinha de longe à pé, do ponto onde a Rural Williams da
prefeitura a deixava, e onde a esperávamos e disputávamos para irmos abraçados
à sua cintura, até o colégio.
Sempre
me deixava escrever nos seus livros Diário e Comprovante. “Que capricho”,
dizia.
Quando
olho para aquela criança que eu era, eu posso perceber que a dedicação dela foi
decisiva para forjar o adulto que me tornei.
Relembrando
com ela, outro dia, interpelei qual autor que norteara sua metodologia
pedagógica, se Paulo Freire, Foucald, Piaget, Perrenoud? ao que ela me
respondeu: ...”Nos 52 anos nos quais lecionei, e mesmo no Pós-Graduação, muitos
autores eu li; concordei com alguns, questionei outros. Mas o que me norteou,
na verdade, era gostar de exercer o magistério, e o amor que eu sentia pelas
crianças. Isto facilitava, porque as crianças, bem como os adultos, se tornam
melhores, quando se sentem amadas”.
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Não
devemos perder tempo, em se tratando de homenagear alguém.
Este
texto foi escrito como tarefa de aula, na disciplina de Didática, na graduação
de Ciências Sociais, pela UFRGS, e posteriormente concorreu no Concurso
Histórias de Trabalho, da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, no ano 2004.
No
dia que levei uma cópia para a homenageada, ela havia baixado hospital, e nunca
chegou a ler o que escrevi pra ela.
Na
verdade, no nosso último encontro, do qual, parte da conversa citei no final do
texto, eu omiti, por respeito aos demais alunos que ela tivera, uma frase que
muito me emociona ter ouvido, onde ela me disse que eu havia sido a melhor parte
da sua realização profissional, e que eu estive todos os dias em suas orações,
juntamente com seus filhos; e finalizou dizendo: “Eu te amo muito”.
Choramos
abraçadas.
Como
é perceptível, ela para mim foi mais que uma professora, foi mais do que uma amiga:
ela foi uma mãe-amiga-professora, reunida numa pessoa só, na qual encontro
todos os dias novas lições nas mesmas lições antigas.
Por
brincadeira do destino, na morte eu pude prestar-lhe homenagem, e então deixei
este texto sobre o túmulo, misturado às flores que os outros alunos lhe
ofertaram, por entender que qualquer outra coisa não diria tudo.
Suelisilvânia
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