segunda-feira, 23 de julho de 2012

Ao mestre, com carinho





            Para Aurealice Chachin Bess - minha primeira professora.


Quando os outros saiam para a escola, eu ficava em casa com os brinquedos.Tinha os balanços na figueira, com as cordas trançadas de cipó São João; a peteca com as penas roubadas do rabo do Galo Vermelho; as pernas de pau, que na verdade eram de bambu; o arco-e-flecha enfeitado de penas de angola, e também as canoas trazidas dos coqueiros do Seu Juca, para se brincar nas barrancas de capim. Tudo adaptado pela manufatura criativa do mano Salvador.
            Porém, o brinquedo predileto eram meus boizinhos de vidro. Aproveitamento das vacinas contra Aftosa, aplicadas nas vacas do tambo de leite do Teneco, e que eu mantinha cuidadosamente presos em currais cercados com cordão de palha de milho e taquara, com tanque de pedra pra água e capim cortado de fresco.
            Tinha também aquele campeonato interno e secreto de procurar os ninhos das galinhas, patas e angolas do terreiro; onde a disputa era intensa e constante.
              Mas eu queria mesmo, era ir pra escola. Descortinar aquele mundo que havia por trás dos cadernos deles, no burburinho deles ao redor da mesa, durante o tema, enquanto eu ficava em torno, quando aprendi a ler por volta dos quatro anos de idade.
            Lia os livros da casa: Manual das Técnicas do Apicultor, O Poder do Pensamento Positivo, (e um brinco de livro - trazido pelo dono das terras: Gal Mário Fonseca, que andava sempre de botas de cano alto, de forma que meus olhos ficavam à altura das fivelas - intitulado: O Cãozinho Brincalhão. Com linda capa e ilustrações, devo tê-lo lido todos os dias durante muito tempo).
            No meu sexto aniversário entrei para a escola. Eu já havia estado lá, na inauguração, quando o então prefeito da cidade, Sr. Arno Juliano, todo enfatiotado, e com grossas lentes, mãos cruzadas às costas, firmando o corpo, ora nos calcanhares, ora na ponta dos pés, pronunciara um complicado discurso em torno da questão do “saber”, o que me deixou matutando sobre aquilo.
            Em madeira, pintada de verde e amarelo (era o militarismo de 1968), não tinha água encanada nem sanitários. Na frente subia uma pequena escada que conduzia até uma área gradeada, que dava para as portas das duas salas-de-aula, a da secretaria e a da cozinha.
            O assoalho desta área era sarrafeado, com frestas por onde se enxergava o porão. Por medo de cair por entre elas, fazia com que minha primeira professora me buscasse no colo, para a sala-de-aula, até o dia em que ela conseguiu me convencer do contrário.
            Era maternal, e acho que gostou de mim imediatamente, como eu também gostei dela.
            Tinha um carinho natural, e uma paciência que estavam nela, muito diferentes daquilo que eu estava acostumada.
            Minha mãe, eu lembro de estar sempre atrás dela (não lembro dela me perceber). Ia com ela para a roça. Arrancava aipim, batata. Levava o balaio e a enxada pra ela.
            Ia com ela pra fonte. Ficava sentada num cepo de pau olhando ela lavar a roupa. Ela batia e esfregava a roupa. Muita roupa...a espuma se formando...
            “Pega o anil”. “Tráz o sabão”. “Tira a roupa da cerca”. “Molha a roupa do quarador”.
            Na talha de pedra, cabiam quatorze baldes: “Encha a talha”. O mato era distante: “Cata lenha”. “Faz o fogo”. O pasto era longe: “Dá água pro gado”. “Leva os bois pra soga”.
            Os colchões das camas eram de palha de milho picadas: “Mecha as camas”.
            Os irmãos eram muitos: “Faz teu irmão dormir”; “Lava a Sued”; “Dá o bico pra Sandra”; “Embala o nenê”.
            O comércio era longe: “Vá na venda”. Penoso não era subir lomba por 2h. Difícil, mesmo, era colocar sobre o balcão a notinha amassada do fiado, e suportar o olhar do Seu Bibi, para ela, enquanto analisava mentalmente o crédito (a colheita da roça era semestral). Eu ficava encolhida esperando, duvidando: “será?” (será que ele vai me perguntar:... “e o teu pai? quando vem acertar?”; será que vai me deixar levar? e se não deixar levar, o quê que eu digo em casa? Será?).
            Minha mãe colocava as panelas na grande mesa de cerne: “Não coma tudo. Deixa pr’os outros”.
            Minha primeira professora conversava conosco. Conquistava no convencimento. Pouco a pouco. Devagar. Cada dia um pedaço. Explicando. Exemplificando. Acreditava numa conversa pra dois. Usava palavras no diminutivo. Se acocorava para falar com os mais teimosos. Abraçava.
            Foi ela quem primeiro me falou de Deus. Disse que Ele era alguém que estava sempre presente, mesmo quando parecíamos sozinhos.
            Fazia-nos repetir com ela: “Jesus, meu amiguinho, me conduza sempre pelo bom caminho”.
            Descreveu a eternidade exatamente assim:... “se um passarinho viesse, de cem em cem anos, e com a ponta do biquinho tirasse uma gota de água do mar, um dia o mar secaria e teria fim. A eternidade, porém, nunca se acaba”.
            Cismei sobre aquilo, durante muito tempo, tentando delimitar tal medida, pois não conhecia nada que não tivesse fim, e misturei na idéia do conceito que se formava, o açude do Seu Dulce, que era a maior porção de água que eu conhecia.
            Naquele tempo não havia Programa de Merenda Escolar. Cada aluno colaborava como podia, para a sopa comum.
            Eu catava lenha pelo caminho da escola, e arrastava até o colégio, para ser usada no fogão.
            Minha primeira professora fazia a merenda. Utilizava utensílios enormes.
            Vez em quando deixava a sala-de-aula para mexer nas panela e atiçar o fogo. Voltava apressada com os cabelos espetados de cinza e fuligem.
            Eu ficava acordada na cama, esperando o barulho do pai, quando ele levantava, esperando a hora de sair para a escola.
            Pegava minha roupa de sempre, pendurada num prego. Enfiava os pés no chinelo, pegava a embalagem reutilizada de Cristalçúcar, contendo caderno e lápis, e saia pra escola.
            Os cordões de chuva encobriam o Morro do Chapéu. Eu ia pra escola.
            O Minuano atravessava a pelúcia do casaco. Eu ia pra escola.
            Café da manhã não houve. Merenda? Talvez. Eu ia pra escola.
            Os bois brabos de tropa que invernavam no campo do matadouro do Seu Dé, bufavam nas barrancas da estrada. Eu ia pra escola.
            Lá havia um mundo a minha espera, por trás das palavras encarreiradas no quadro-negro (e era negro). Brotavam da Cartilha do Guri, das Pincelada de Verde e Amarelo (em cuja contracapa estava escrito: “Estudar para saber. Saber para vencer”); daquilo que a professora trazia e lia pra nós. Ela sempre lia pra nós. Pairava o silêncio sobre as crianças. Nunca Coelho Neto fora tão convincente, com seu Pequenito, como na voz dela.
            Para chegar até aquele portal de possibilidades para o novo, eu atravessaria a cidade, se precisasse.
            Quando a geada branqueava a estrada, e os meus pés e mãos doíam, pra não me ver chorar, meus irmãos me propunham pequenas corridas até a olheira de sol mais próxima, que sempre me deixavam ganhar, e eu ficava me aquecendo por alguns instantes.
            Lá na escola, como era interessante o gorro de lã, da Zaíra. Com as luvas vermelhas da Rosana, eu sonhei muitas vezes. Quando minhas velhas roupas surradas eram notadas em alguma piadinha dos colegas, eu não deixava que ele voltasse pra casa ileso.
            Minha primeira professora me defendia dos pais das crianças que eu batia. Sempre argumentava que eu não fizera por gosto: ...”a suelizinha não fez por querer”, repetia.
            Parece que me enxergava por dentro, pois sempre atinava a real intenção dos meus atos. Ela sempre me supunha melhor do que eu era.
            Gostava de nós nos olhos. Na voz.
            Creio que de tanto ouvi-la dizer que eu não tinha má intenção nos meus maus atos, passei a não ver má intenção nos atos dos meus colegas, e as brigas foram cessando.
            Substituía a colega. Juntava as turmas. Repartia o quadro com um risco de giz(branco). Explicava. Explicava. E reexplicava.
            Varria o colégio. Enchia os baldes com água. Fazia expedições com os alunos mais corajosos contra os ninhos de camundongos da despensa da merenda.
            Brincava conosco no recreio. Naquele tempo, todas as crianças brincavam juntas numa única brincadeira. Corria. Se escondia. Pulava.
            Era Pata-Cega, a Cirandinha. Era o que quiséssemos que ela fosse.
            Organizava a fila. Cantava o Hino Nacional. Ensinou-nos a Posição de Sentidos (“...Calcanhares unidos. Ponta dos pés afastadas”...).
            Quando chegavam os ovos coloridos na venda do Seu Doralino, eu sabia que era chegada a Páscoa. Minha primeira professora trazia ovos de galinha, recheados com amendoim.
            Orava conosco, antes da merenda, agradecendo a Deus.
            Caçava pelas moitas vizinhas, os alunos fujões das vacinas obrigatórias que os soldados do 19 RI de São Leopoldo vinham, de Jeep, para nos aplicar. Eu mesma ela resgatou de uma moita e me levou no colo e chorou comigo dizendo que era para o meu bem.
            Lembro de uma feita que chegaram muitos vidros na escola, e foram distribuídos para os alunos e familiares coletarem amostras para análise de verminose. Minha primeira professora rotulou-os e os distribuiu, com cartazes que mostravam um Zeca Tatu amarelo, com pés descalços, em cujas solas entravam diversos vermezinhos.
            Durante muito tempo verifiquei a sola dos meus próprios pés, depois que vieram os resultados da análise, quando precisei passar longo tempo tomando Uvilon e Licor de Cacau.
            Minha primeira professora limpava nossos aranhões. Enxugava nossos olhos. Era boa. Podia-se contar com ela.
            Me deu aulas durante todo o Primário. Me ensinou sobre Números Negativos, me preparando para o exame de Admissão ao Ginásio.
            A escola era situada numa espécie de campo aberto, salpicado de elevações de cupinzeiro, onde as corujas faziam suas tocas; com um banhadinho onde morava uma família de quero-queros, que sofriam com as crianças no recreio. Tudo rodeado de maricás.
            Minha primeira professora vinha de longe à pé, do ponto onde a Rural Williams da prefeitura a deixava, e onde a esperávamos e disputávamos para irmos abraçados à sua cintura, até o colégio.
            Sempre me deixava escrever nos seus livros Diário e Comprovante. “Que capricho”, dizia.
            Quando olho para aquela criança que eu era, eu posso perceber que a dedicação dela foi decisiva para forjar o adulto que me tornei.
            Relembrando com ela, outro dia, interpelei qual autor que norteara sua metodologia pedagógica, se Paulo Freire, Foucald, Piaget, Perrenoud? ao que ela me respondeu: ...”Nos 52 anos nos quais lecionei, e mesmo no Pós-Graduação, muitos autores eu li; concordei com alguns, questionei outros. Mas o que me norteou, na verdade, era gostar de exercer o magistério, e o amor que eu sentia pelas crianças. Isto facilitava, porque as crianças, bem como os adultos, se tornam melhores, quando se sentem amadas”.
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            Não devemos perder tempo, em se tratando de homenagear alguém.
            Este texto foi escrito como tarefa de aula, na disciplina de Didática, na graduação de Ciências Sociais, pela UFRGS, e posteriormente concorreu no Concurso Histórias de Trabalho, da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, no ano 2004.
            No dia que levei uma cópia para a homenageada, ela havia baixado hospital, e nunca chegou a ler o que escrevi pra ela.
            Na verdade, no nosso último encontro, do qual, parte da conversa citei no final do texto, eu omiti, por respeito aos demais alunos que ela tivera, uma frase que muito me emociona ter ouvido, onde ela me disse que eu havia sido a melhor parte da sua realização profissional, e que eu estive todos os dias em suas orações, juntamente com seus filhos; e finalizou dizendo: “Eu te amo muito”.
            Choramos abraçadas.
            Como é perceptível, ela para mim foi mais que uma professora, foi mais do que uma amiga: ela foi uma mãe-amiga-professora, reunida numa pessoa só, na qual encontro todos os dias novas lições nas mesmas lições antigas.
            Por brincadeira do destino, na morte eu pude prestar-lhe homenagem, e então deixei este texto sobre o túmulo, misturado às flores que os outros alunos lhe ofertaram, por entender que qualquer outra coisa não diria tudo.
            Suelisilvânia

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